quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Capítulo 10

Capítulo 10 – Torta de Morangos com Castanhas



   Pescoço dos Homens, a cidade dos Cavaleiros do Rei, adorada por muitos e odiada por Merlon, mas para Nogard e Arwen era um paraíso de tijolos, o sol começava a nascer e eles caminharam pela cidade em direção aos salões de Jih’ndo. Eles entraram pelo Portão Norte, e começavam agora a atravessar a área dos comerciantes, Nogard viu enormes casas de tijolos acinzentados,de ambos os lados da rua, com até três andares, flâmulas tremulavam no topo das casas e galhardetes com o cavalo prateado da cidade estavam em todas as lojas e em todas as ruas, um cavalo prateado empinando em fundo azul escuro, ali outrora um Dragão dividia os estandartes com o cavalo prateado, Marultichrux, Aquele que Cavalga os Ares, O Dragão da Cidade dos Homens, A Prata Alada, mas esses tempos se foram, e hoje apenas o cavalo é ostentado na cidade de Pescoço dos Homens.
  A carroça de Merlon fazia um barulho ensurdecedor em contato com as pedras do pavimento, algo que parecia diverti-lo, ainda mais pelo fato de que a grande maioria das pessoas ali estarem começando a acordar agora. Renolon partilhava uma pequena carruagem aberta com Jih’ndo, e Nogard montava Arkas, o que atraía muitos olhares, olhares até demais, Arwen o acompanhava na garupa, e eles apontavam e davam nomes a todas as coisas que viam. Viram lojas com paredes de todas as cores possíveis, a Rua do Comércio era um arco-íris de tecidos e armas.
  - Não deixe as cores te enganarem garoto – disse Merlon -, a mais sombras nessa cidade do que os homens podem ver.
  - Ora meu velho amigo – completou Jih’ndo com um sorriso-, e em que lugar não há.
  Havia espadas, lanças, escudos e cotas de malha, elmos de couro fervido e de aço, armaduras leves e pesadas couraças de batalha, botas de todos os tamanhos e estilos, também havia medicinas, provavelmente Bolkurianas, especiarias culinárias vindas de Angur, animais em jaulas, leões prateados das montanhas ao norte da cidade, ursos dos bosques de Lago do Rei e inúmeras águias e falcões, tecidos de diversas cores atravessavam a rua de um lado até o outro, por cima das casas e das lojas. A rua foi se abrindo gradativamente até que terminou numa enorme praça, com um chafariz ao centro, com quatro cavalos de mármore empinados, um em cada direção, e no seu centro havia um homem, um homem muito alto, um velho cuja feição lembrava o Senhor Halgul, que Nogard e Arwen tanto atormentavam com suas brincadeiras, estava com as mãos apontadas para os céus e de seus dedos corriam água, a água cristalina do Rio de Ferro, que nascia nas montanhas.
  - Quem é? – perguntou Nogard.
  Merlon estava conversando com sua Decadência e não deu atenção ao garoto, mas Renolon o respondeu.
  - Este é Tartos, um antigo Maegi Banedúim, durante a batalha de Belindor ele se rebelou contra seu povo e ajudou os Jeh’khgari a vencer a batalha, foi o responsável a espalhar a magia Banedúim em meio aos Jeh’khgari.
  Merlon pareceu esquecer Decadência por um instante.
  - Um traidor Nogard – Renolon virou os olhos -, um homem que traiu seu povo, nunca traia os seus Nogard, e não se deixe trair, confie cegamente em um homem mas sempre o mantenha ao alcance da visão, ou da espada. E você, jovem Cavaleiro – disse Merlon dirigindo-se a Renolon -, não vire seus olhos, isso não é nada... Régio.
  Renolon abriu a boca para dizer algo mas desistiu no meio do caminho.
  A praça era cercada por mais lojas, ali havia um quartel de Cavaleiros e um pequeno estábulo, ao longe podia-se ver a grande Fortaleza Central, com suas altas torres e suas muralhas internas.
  - Chegamos meus senhores – disse Jih’ndo, apontando para um grande par de portões -, espero que estejam com fome.
  A menção da palavra fez o estômago de Nogard roncar tão alto que Arwen se assustou.
  Enfim eles entraram na construção.
  Era um enorme cômodo com algumas divisórias, o teto era feito de vigas pesadas de madeira, e era alto o bastante para que um Dragão dormisse ali. Nogard desmontou Arkas, reclamando de câimbras, e o entregou ao cavalariço de Jih’ndo, o homem recusou-se a aceitar e Renolon deu uma gargalhada.
  - Nogard, os Gravas não precisam de cavalariços, eles se guardam e eles se retiram.
  Nogard deu de ombros e soltou as rédeas, no mesmo instante Arkas foi para a cocheira se alimentar e beber um pouco de água.
  - Cavalheiros. – Jih’ndo acenou para seus convidados, mostrando-lhes uma porta, onde uma divisória transformava-a em uma enorme sala de refeições.
  Todos sentaram-se à mesa e então os pratos começaram a ser servidos. Primeiro veio um grande leitão assado, estalando e com a gordura ainda borbulhando em sua carne, um dos servos despejou um punhado de mel e limão sobre a carne, afim de amaciá-la ainda mais, alguns pães e algumas fatias de queijo foram espalhados à frente dos convidados, dois enormes jarros de vinho foram postos em ambos os lados da mesa, cornos de cerveja foram trazidos das cozinhas acompanhados por saladas verdes e pequenas rodelas de laranja com abacaxi, Nogard e Arwen esperaram salivando até que o anfitrião desse as boas à comida.
  E quando o fez não imaginou que o grupo estivesse tão faminto.
  Merlon retirou uma coxa inteira do leitão, Nogard e Arwen mordiam os abacaxis, e o sumo lhes descia pelo queixo, até mesmo Renolon comia com vontade e sem modos.
  Jih’ndo sorriu satisfeito.
  - Sabe o que é melhor do que comer, meu jovem? – perguntou Jih’ndo.
  Nogard estava com a boca cheia demais para responder e apenas emitiu um ruído, que Jih’ndo deduziu ser um não.
  - Alimentar amigos famintos. – bateu palmas e mais uma vez os criados do rico Jeh’khgari começaram a se mover.
  Cinco taças de saladas de frutas com mel foram trazidas, acompanhadas por uma enorme torta de morangos com castanhas, cuja polpa escorria pelas beiradas.
  Nogard e Arwen não tocaram nas taças, a torta parecia promissora demais para se perder tempo com frutas picadas.
  Após o café da manhã mais completo que Nogard já viu, todos estavam satisfeitos, menos ele, que continuava beliscando pedaços da torta de morangos.
  - Bem, vamos aos negócios então? – perguntou Jih’ndo, cruzando os dedos das mãos sobre a mesa.
  - Acho que destino seria a palavra mais adequada para o que trataremos aqui. – respondeu Renolon, recostado na cadeira.
  O Jeh’khgari sorriu, abriu as mãos no ar e falou.
  - Perdoe-me Príncipe, mas para um Jeh’khgari tudo são negócios, desde o nascimento até o sepultamento, e como meu velho pai costumava dizer, não faça negócio até que ambas as partes falem tudo o que tem a dizer.
  - Entendo. – respondeu Renolon, mas não concordou – Somos diferentes com toda certeza.
  - Ah sim, isso com certeza. – respondeu o Jeh’khgari, então se voltou para Merlon que montava seu cachimbo, mesmo sem a permissão do dono da casa – Merlon, como faremos o tal treinamento?
  Merlon acendeu seu cachimbo, sem pressa alguma, passou a mão na longa barba branca.
  Estou passando mal, acho que comi depressa demais, pensou Nogard.
- Lorde Grum já esta na cidade? – perguntou o velho ferreiro.
  Jih’,ndo assentiu.
  - Então não há muito o que se tratar agora, ele ficará com as lanças, você com o dinheiro do pagamento e com uma surpresa que arrumei para você. – disse o velho e riu.
  Nogard ouviu a palavra surpresa e se lembrou, meu presente, esse Jeh’khgari me deve um presente, foi Merlon quem disse e Merlon nunca me engana, então sem rodeios ou cortesias, se levantou.
  - Senhor você me deve um presente. – disse o garoto, completamente cheio de morangos.
  - Devo? – perguntou Jih’ndo sem se mostrar intimidado.
  Nogard percebeu que não ganharia coisa alguma, e ainda teria que explicar aquela falta de modos à bota de Merlon.
  - Foi ele quem disse. – e apontou para Merlon.
  - Ah, então agora sou seu cavalo de carga, para levar as chicotadas em seu lugar? – ironizou Merlon.
  Definitivamente não deveria ter comido mais torta, Nogard começava a ficar tonto.
  Jiih’ndo não conteve mais o sorriso e riu abertamente.
  - Muito espirituoso da sua parte meu rapaz, cobrar algo que não lhe devem e ainda por a culpa no Senhor General Merlon. – e gargalhou novamente – Seu presente esta à salvo, você irá recebe-lo na hora certa. Mas posso lhe adiantar do que se trata, é uma arma, não uma como a que Merlon carrega mas é uma arma mágica, existem muitas armas secretas espalhadas pelo mundo, Nogard, umas trazem o bem e outras trazem o mal, outras ainda podem trazer ambos ou nenhum. Mas por hora vamos resolver seu destino.
  Meu destino? Pensou o garoto que não estava entendendo muito onde aquela conversa daria, decidiu então se calar e apenas prestar atenção.
  - Lorde Grum não irá querer levar o garoto. – disse Renolon.
  - Sinto lhe informar, Cavaleiro, mas ele não tem escolha. – disse Jih’ndo, removendo um morango da torta e o levando à boca. – Atualmente possuo mais da metade dos investimentos de Pontas de Lança, investimentos militares, impostos de grandes senhores e algumas lojas, ele não terá escolha, eu asseguro.
  - Então esta feito – disse Merlon, virou-se para Nogard -, ainda quer ser um Cavaleiro, filho?
  Nogard ficou surpreso com a pergunta, a poucos dias atras não era mais do que um garoto em Ferro Forte, carregando baldes de água, sacas de carvão ou toras de madeira, agora era amigo de um Cavaleiro, o Príncipe de Arelon, comera na residência de um dos homens mais ricos do reino e possui um cavalo sagrado de mil anos, todas essas idéias juntas e os morangos embrulharam-lhe o estômago, e sua resposta veio em forma de vômito, uma das criadas de Jih’ndo veio correndo limpar a sujeira do garoto.
  Nogard levantou-se da cadeira e parecia assustado, começou a olhar para os lados da mesma maneira que havia feito na Colina de Mélis.
  Merlon levantou-se, ele sente alguma presença, ele conhece o espírito das sombras melhor do que eu mesmo, pensou o velho e tocou o punho de raízes de Mitrhiilden. Renolon desembainhou sua lâmina. Arwen estava assustada demais para falar ou fazer alguma coisa e Jih’ndo estava chamava alguns guardas. Arkas empinava e relinchava como um louco.
  - O que foi Nogard, pressente algo? – perguntou Merlon.
  - Sim está se aproximando, e rápido, parece que esta dentro de mim, posso senti-lo. – disse o garoto e então caiu sentado.
  - São Bulks garoto. Você pode sentir a presença deles, assim como eu. Me diga quantos? – perguntou Merlon, agora como General, importando-se com números.
  Nogard fechou os olhos, o ar passava por sua cabeça como um redemoinho de pensamentos, não via nem sentia nada, o barulho do vento era ensurdecedor, sentiu as nuvens no rosto e teve certeza de que estava desmaiado.
  - Nog! – Arwen conseguiu gritar.
  Então ele abriu os olhos novamente e olhou para Merlon, seus olhos estavam vermelhos, de terror e medo.
  - Não são Bulks – disse o garoto -, é maior.
  Então todos ali ouviram o som, um som que era familiar e ao mesmo tempo novo, um som que não era ouvido a mais de dez anos. Os sinos e as trombetas da cidade eram tocados, em sintonia amedrontadora, os mais velhos conheciam aquela melodia, Merlon chamava aquela canção de Perdição dos Homens, e ela só era tocada em uma ocasião.

  - Dragão. – disse Nogard, esquecendo-se da proibição de Merlon. 





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