Quando em algumas conversas levanto críticas (por exemplo, as de Wittgenstein, num nível epistemológico) com relação à psicanálise, uma reação comum e digna de respeito é martelada: a psicanálise é o último bastião da alma num admirável mundo novo de epifenomenalismo, funcionalismo e, principalmente, fisicalismo. Explico. O viés psicanalítico é tido por seus defensores como mais humano do que a mecânica psiquiátrica e das neurociências, e mais propriamente profundo do que o behaviorismo 2.0 da psicologia cognitiva. Enfim, não interessa a base ou sustentação física do fenômeno mental por excelência subjetivo, é dele e apenas dele que trata o processo de análise. Essas outras disciplinas estão preocupadas com dados grosseiros, informações brutas, tais como indícios químicos e físicos na caixola, ou comportamentos mensuráveis — nem que seja por questionários e testes (cuja elaboração, por si só, mesmo na psicologia mais poindexteriana e com pretensões de método científico clássico, está cheia de labirintos epistêmicos insolúveis, que vão das determinações linguísticas ao processo de adaptação seletiva, e toda sorte de complexidade biológica, matemática e estatística até um limiar quase autodeclaradamente místico, que, ironicamente, acaba por soar tão charlatão quanto o autoconfesso próprio “Lacan”. Essas aspas aí também só para gerar frisson lanacal, não repare.)
E não só o viés econômico assola a “ciência dura”: por maiores que sejam as conquistas da neurociência e das outras ciências cognitivas, o fato é que não há evidências ou provas dos fundamentos assumidos, tais como o fisicalismo. Bastam algumas aulas de filosofia da mente para se entender que todas as tentativas usuais de explicação da mente estão carregadas de problemas complexos. Nenhuma delas “provada” sob nenhuma concepção adequada do termo.
O sucesso da mecânica newtoniana em explicar a maioria dos fenômenos mecânicos corriqueiros de forma alguma é prova de que a noção de espaço newtoniano é o caso. Algo semelhante ocorre hoje com as ciências cognitivas, que se mostram efetivas em explicar determinados fenômenos, mas que a partir disso querem esfregar, de lambuja, seus fundamentos injustificados em nossas caras.
Pessoalmente acredito, como única possibilidade de combate a essa tendência mecanicista, no método introspectivo com a instrumentalização de métodos orientais de meditação — instrumento aperfeiçoado e aguçado da introspecção, que é justamente o que faltava nas primordiais tentativas frustradas de Wilhelm Wundt e Edward Titchener.
Ainda que muito se fale nessas conexões em certos âmbitos, e dentro da ciência cognitiva mesmo, o desafio da crença metafísica no monismo fisicalista (e no mais insidioso e complexo funcionalismo) está muito longe de ocorrer nesse contexto. Mas ainda virá. Mas dificilmente das emoções baratas do interpretatio furioso dos conceitos psicanalíticos.
Por mais que a moda entre os jovens já seja, por mais de 10 anos, o geek desbragado, quase evangélico da ciência e seguidor do Neil Degrasse Tyson, ou algo do tipinho… o psicanalista segue o arquétipo do intelectual sempre de alguma forma ligado a algum tipo datado de classicismo pós-iluminista/pós-darwinista, e hype de performer pós-estruturalista/pós-
Trata-se, enfim, de outra forma de cultura de epifania, em que coisas sempre significam outras coisas, numa dança infinita de anagramas simbólicos, salientes particularmente se nos deixam de cabelos eriçados, ou se apelam para nosso cabritismo – horror ou lascívia, e, preferencialmente, ambos.
Mas e a penetração da teoria psicanalítica na cultura? No título, brinquei com Freud como um molestador, mas quem me explicou pela primeira vez quem foi Dr. Freud e o que era o complexo de Édipo foi, ora, minha mãe.
E esse é o aspecto que considero mais interessante da teoria psicanalítica: seu efeito na cultura, em feedback. Embora tenha claramente se beneficiado do modismo em torno de sua teoria, Freud se horrorizou com as primeiras tentativas de artistas de incorporar versões de almanaque da psicanálise em obras de arte. Ora, o que seria o movimento surrealista senão exatamente uma tentativa de transformar em arte a exposição pública do objeto de análise?
Afinal, a teoria tinha um apelo para as massas que misturava histórias de detetive e literatura erótica.
Da psicanálise pelo artista no surrealismo também marxista de um Buñuel, por exemplo, nos voltamos ao psicanalista público da cultura como bobo da corte. E os dois extremos se encontram num beijo apaixonado do Alien (desenhado como fálico e vaginal, simultaneamente) com a Tenente Ripley.
E isso, curiosamente, acaba um espetáculo cativante — também por sua inclusão num momento histórico, e seu apelo de nicho.
Em meio a isso, nas notícias, a piada freudiana pronta: o charuto de Clinton, que foi além da função simbólica, príncipes que querem ser o OB de suas amantes, Anthony Weiner (Armando Pinto, ou algo pior). Na produção textual acadêmica, o ato falho constantemente imortalizado e glorificado, durante o próprio ato da teorização, como “riqueza polissêmenca”, ou algo do typo — ou, mais atual, autocorreção automática.
O psicanalista talvez busque uma união topológica do real com o simbólico e o imaginário, e diga que enfim, esses elementos teóricos são fatos, não invenções psicanalíticas. Mas, que diferença faz? Não é como se, fora de si mesma, ela sirva para qualquer coisa senão vender o frisson de si própria, junto com todo o universo de possibilidades do universo de frissons. Se revela estruturas subjacentes ou as incita, inventa, produz: tanto faz.
Freud, com sua pretensão vitoriana de ciência certamente se horrorizaria com a kitschificação via, por exemplo, Hitchcock – outro que descaradamente usava uma versão de almanaque das teorias para apimentar enredos, diálogos cheios de entrelinhas e até cinematografia. Filmes ótimos, aconchegantemente datados até na importância que dão a pirações freudianas!
Mas o pensador cultural hoje talvez glorifique exatamente a psicanálise pop, ou do pop, com o objetivo de incluí-la na teoria, ou intensificá-la, ou apenas, quem sabe, angariar simpatia. Afinal de contas os quadris da Shakira não mentem.
E ninguém domina o pânico irracional da tela como Lynch. Passamos algumas vezes duas horas sem entender nada, mas só quem não arrepia é morto. E olhe lá.
O quão explícito será o porn epistêmico psicanalítico numa dada obra pode variar tanto quanto das entrelinhas do cinema ultralatente da era do código de decência ao smut gonzo, o reality show efetivamente pornográfico. Que, confessemos a nossos parceiros, está cheio de pirações ao estilo “Freud Explica” — afinal, a mente simbólica e fruitiva também rende punheta.
Mas esta lacanagem toda, esse Guia do Pervertido para o Cinema (o título do vídeo ele mesmo demonstrando, ainda que ironicamente, a lubricidade, agora feita explícita e desavergonhada, com a aplicação da teoria na cultura — mesmo que “perversão” sempre seja polissêmico técnico da psicanálise e julgamento moral na linguagem cotidiana, algo que não escapa ao piadista) indicam mesmo um sucesso inesperado da teoria freudiana.
A sua efetividade terapêutica segue irrelevante, seja porque a teoria é naturalmente antitética à mensuração, seja porque seus resultados são definidos de forma circular. Mas também porque, independente disso, que surge como mais importante, se mantém viva como, no mínimo, fetiche cultural.
Mas não só isso: se temos um exemplo do poder da teoria freudiana, ele está na aterrorizantemente efetiva psicologia de massas empregada em publicidade e relações públicas ao longo do século XX. Freud de fato conquistou algum talismã de atrair ou repelir o que quer que seja esfregado com certos fluídos teóricos, isso não podemos negar. O sigilo do gênio abraâmico segue ungido.
Ainda que ele ele, todos compreendamos, nunca tenha querido que ela se tornasse objeto de fascínio por motivos frívolos e talvez torpes. Isso ele de fato nunca esperou. Independente disso, o voyeurismo analítico (platônico, linguístico, cabalístico, assunto sério como a Alemanha) inexoravelmente paira sobre a cultura, embutido em nossos olhos agora treinados, e viciados, pela tara simbólica do totem e tabu do judeu vienense com um charuto na boca.
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